O que você quer com a literatura?

Por Michael Amorim

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Uma das maiores e mais perniciosas mentiras divulgadas pela classe dos ditos leitores é a de que um livro é uma viagem, uma fuga do mundo em torno, que a leitura serve para nos desligar da realidade, que nos fecha em nosso pensamento ou coisas semelhantes. Mas isso, é claro, é apenas mais um traço da personalidade do que pode-se chamar de leitor pop, aquele sujeito que cheira livros novos e adora exibir seus exemplares de Harry Potter. Não há nada de mais falso do que dizer que a leitura é uma forma de fugir da ordem externa refugiando-se na ordem mental.

Se algo é inegável em toda a história da literatura universal é o fato de que não se deve ir às obras de ficção para sair deste mundo, pelo contrário, deve-se ler para recuperar o elo com a realidade outrora perdido. Para estarmos cada vez mais com os pés firmes no chão e conscientes da situação em torno. Cientes de nossas circunstâncias. Não se trata de sair do mundo, mas antes, de adentrar nele. Parar de acreditar no mundo que criamos em nossa mente, com nossos pensamentos, e compreender o mundo que se apresenta diante de nossos olhos. Tão real quanto à luz do sol ou o calor do fogo que vêm de fora aquecer nossos corpos e iluminar as trevas de nossa ignorância.

Os personagens da literatura expressam muito mais que um mero sonho, são modelos de vidas possíveis inspirados na realidade e em situações verossímeis. Quem nunca cruzou com um Lara Ribas por aí, sujeito que acha que, por ter inclinações à vida intelectual, não tem obrigações com o sustento da família? Quem não conheceu algum pobre diabo que tenha casado com alguma Emma Bovary, esposa que vive de aventuras amorosas fora do matrimônio? Quem não já gastou quinze meses e onze contos de réis com alguma Marcela, mulher bonita e interesseira, personagem de Machado de Assis? Ou ainda, quem não reconhece em Ivan Ilitch, personagem de Tolstoi, um sujeito infeliz, frustrado e totalmente dominado por suas circunstâncias, incapaz de controlá-las? Ou em Heitor, príncipe de Tróia, um arquétipo de herói, viril, corajoso e justo?

Em suma, ter cultura literária significa bem mais que ter erudição. Literatura é bem mais que passatempo ou distração; não se trata de um mundo diferente do nosso com vidas diferentes da nossa; é, antes, um mundo possível com vidas que não são as nossas mais que poderiam ter sido. Situações que poderíamos ter passado, decisões que poderíamos ter tomado e erros que poderíamos ter cometido. São essas situações, reais ou possíveis, que formam nosso imaginário e moldam nosso caráter. Sem isso não somos mais que plagiários de orangotangos incapazes de olhar para a relva e ver-se perdido como Robson Crusoé; de imaginar-se, ao ser traído por um amigo, como Edmond Dantès traído por Fernand; de reconhecer as profundezas de uma mente inteiramente e verdadeiramente má como a do Conde Drácula de Bram Stoker. Quem não leu Shakespeare dificilmente saberá reconhecer as sutilezas demoníacas do ciúme, ciúme que levou Otelo, o mouro de Veneza, a tirar a vida da inocente, doce e apaixonada Desdêmona. Pode ser que a vida imite a arte, mas é certo que sem a arte não se saberá viver. As narrativas literárias são, por assim dizer, verdadeiros mapas para quem dispõe de uma única vida e tempo demasiado limitado para viver todas a gama de situações. Viver é sentir-se perdido, diria Ortega y Gasset, mas aquele que renegar o mapa estará um tanto mais perdido.

Escreveu Eugen Rosenstock: “há em nós uma mudez que espera tornar-se linguagem”. A cura para essa mudez não pode estar em outro lugar que não nos clássicos da literatura. Os literatos são como guias ou faróis que iluminam o caminho. São capazes de expressar o que sentimos, mas não sabemos dizer. Em diferentes estilos, sob diferentes formas e gêneros literários. Seja nas peças de Shakespeare, nos contos das Mil e Uma Noites ou nos romances de Dostoiévski, o literato põe na pena toda a gama de possíveis situações humanas.

Olavo de Carvalho tem toda a razão (pra variar) quando diz que se a literatura brasileira não reflete em nada a realidade do Brasil, não mais fala ao brasileiro. E se não fala ao brasileiro, fala a quem? Ainda poderá servir para algo quando tudo que tem a oferecer são explorações banais da psiquê humana, situações artificiais e personagens nada verossímeis, estranhos ao nosso cotidiano e vazios de dramas humanos universais? Uma literatura que não reflete modelos de vida perdeu a razão de ser. Tornou-se panfletagem, retórica vazia, mero passatempo.

Os clássicos da literatura são clássicos justamente por narrarem ao leitor algo mais que simples e banais situações, eles expressam situações humanas universais, capazes de serem reconhecidas por quem os lê e de elevarem a condição do leitor no momento mesmo da leitura. O leitor não vai a um clássico apenas para entreter-se com alguma história boba, vai para aprender mais sobre seu país, entender os fatos da história e da sociedade, sua cultura e até mesmo sua alma. Para ver modelos de vida e poder reconhecê-los no mundo real.

Quando se lê dessa forma Aquiles deixa de ser um personagem fictício e distante, existente só em nossas mentes, e passa a ser um esquema interpretativo do próprio mundo em que vivemos. Emma Bovary, incapaz de buscar nos livros esquemas de interpretação de sua vida, usou-os como incentivo para distanciar-se da vida de mulher casada. Em vez de completar-se pela leitura de romances, fragmentou-se ainda mais. Entregou-se a uma vida dupla onde tudo se tornou falso e caricatural. Não compreendeu que se deve buscar nas personagens, modelos. Heitor, Ulisses, Enéias, Anna Karenina, Sherlock Holmes, Scrooge, Brás Cubas e tutti quanti, são mais que fantasia, são esquemas, chaves de interpretação de dramas observados ou vivenciados. Nesse sentido, quanto mais distante do mundo real for a obra, mais descartável ela é.

As boas obras nos ensinam a separar o possível do impossível, o verossímil do absurdo, o banal do excepcional; preparam-nos para o mundo, põe-nos em contato com a maldade, frieza, inteligência, sutileza, sacrifício e amor humanos. Nos fazem aprender a viver, a sermos, de fato, parte da humanidade. Por isso a suspensão da descrença. Um clássico é mais que entretenimento, é uma vida possível. É algo que você poderia ter feito, mas não fez.

Por isso é imprescindível que, na leitura, se viva na pele do personagem, mesmo os maus. É fato, até maus exemplos nos ensinam. Se um clássico vai além do entretenimento, também é mais que uma proposta moral. Assim sendo, uma leitura eivada de moralismo pode e atrapalha bastante a compreensão e, principalmente, absorção da obra que deve estar livre desse tipo de julgamento. O que interessa, nas obras de literatura, não é fazer julgamento das escolhas morais ou imorais dos personagens, mas aguçar, com elas, nossa percepção moral. Expandir nosso imaginário e, assim, melhor julgar a nossa própria vida e ponderar nossas próprias escolhas. A literatura, sobretudo a poesia, deve ser tomada como expressão momentânea e possível de sentimentos e atitudes, não como propostas dogmáticas de moral e conduta. Lê-las assim é não saber ler. É confundir Hamlet com um código de filosofia moral.

Obras da literatura não existem para serem condenadas ou absolvidas, pois, nos dois casos, há julgamento. Existem para serem absorvidas, integradas à personalidade. Devemos ir aos clássicos da literatura para maturar nossas posições, vencer nossos preconceitos, reconhecer o mal, amar o bem; para sabermos expor melhor nossos sentimentos, ver a complexidade da vida e, sobretudo, nos tornar humanos completos, pois, como disse o escritor cubano Guillermo Cabrera Infante em sua História do Conto, “o conto é tão antigo quanto o homem”. E continua:

Antes até que aquele anônimo artista de Altamira pintasse seus minuciosos murais, deve ter existido um autor anônimo na região que contasse contos para seus companheiros de caverna sentados em volta de uma fogueira. O homem, como sabemos, é o único animal que faz fogo. O contista é o único ser humano que faz contos. Esses contos seriam, por exemplo, narrações de um dia de caça perdido no encalço de um cervo branco com um chifre na testa. Os contos não perduraram nas paredes da caverna, mas não se perderam: foram reencontrados, contados, na memória coletiva”.

Um clássico tem a dupla missão de nos fazer conhecer melhor o mundo e a nós mesmos. Era José Monir Nasser quem dizia que nós não explicamos os clássicos; eles é que nos explicam. 

Sentar em volta da fogueira para ouvir sobre o mundo e suas aventuras – ou desventuras –, sair da prisão de nossos pensamentos, creio ser o principal convite que nos faz a literatura. Afinal, nascemos em duplas trevas: pecado e ignorância, a salvação para ambos vem de fora: da graça redentora do batismo e da leitura atenciosa dos clássicos. Leitura que ilumina como as chamas da fogueira que arde aquecendo aqueles que ouvem atenciosos as palavras do ancião. Palavras que trazem símbolos que refletem, ali mesmo, a humanidade. Ligando os ouvintes, antes isolados pelo tempo e pelo espaço, ao restante da raça humana de todos os tempos e lugares.

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