Um falso necrológio.

Por José Lorêdo Filho

14021458_1092481867495080_8994374303204212076_nJosé Lorêdo Filho, José Santini, Ronald Robson e Henrique Helfes em visita a Jomar Moraes (o quarta da esquerda para a direita)

Soube do falecimento do escritor Jomar Moraes logo após ter chegado da Missa, já me preparando para o almoço do Dia dos Pais. Desnecessário dizer do meu abatimento. Havia estado em casa do grande pesquisador e editor não fazia nem duas semanas. Presenteei-lhe com um exemplar do Contos de fadas e outros ensaios literários, do grande Chesterton, em tradução do nosso amigo em comum Ronald Robson. Não pude deixar de notar o seu estado combalido; pressenti o começo do fim.

O dr. Jomar, como respeitosamente o chamava, sempre generoso, sempre carinhoso, fez logo a sua secretária lhe trazer exemplares de seus últimos feitos editoriais: a Poesia reunida, de Maranhão Sobrinho, pela primeira vez organizada e editada; a 5° edição da História do Maranhão e a 2° da História de São Luís, ambas desse mestre da historiografia maranhense, Mário Meireles, cujo centenário comemorou-se em 2015.

Ele me deu os três presentes régios com a pergunta costumeira:

– Ficaram bonitos, Lorêdo?

– Ficaram belíssimos, dr. Jomar – respondi, sorrindo.

Conversamos sobre livros, o mundo editorial, projetos futuros. Fiz-lhe ver da necessidade de uma nova edição, mais manuseável, do Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão, de César Marques, até hoje o mais importante repositório de dados sobre o Maranhão. Havia feito ele a 3° edição – crítica, ampliada e atualizada – do clássico, labor que lhe custara 10 anos de dedicação, publicada em 2008, em comemoração ao centenário da Academia Maranhense de Letras. Já se tornara a sua admirável edição crítica raridade bibliográfica.

– Lorêdo, o que acha de fazermos em dois volumes? – perguntou-me.

– Perfeito, dr. Jomar. Assim estará solucionado o “problema” da extensão do livro.

– Sim, vamos fazer.

Disse ao mestre que tinha interesse em publicar a sua tão aguardada dissertação de mestrado em História, cujos originais alguns poucos amigos haviam tido o privilégio de ler, entre os quais eu mesmo. A dissertação versava sobre a vida e a obra do próprio César Marques, o autor do Dicionário… O título do trabalho não podia ser outro:O homem-dicionário. Trata-se da primeira tentativa de análise sistemática da vida e obra do grande pesquisador maranhense, cujos frutos ultrapassam, e muito, os limites da Província do Maranhão.

– Vamos fazer, Lorêdo. Você só me dá um tempo para uma última revisão?

– Claro que sim. O texto já está digitado?

A sua secretária, então, prometeu-nos digitar o quanto antes. É curioso: ainda ontem, no velório do mestre na Academia Maranhense de Letras, veio ela me procurar para perguntar se eu ainda “tinha interesse”. “Claro que sim”, respondi. “Vamos fazer”.

Fiquei bastante tempo do lado de fora da Academia, durante o velório do mestre, em companhia do meu amigo Ronald Robson, o talentoso tradutor de Chesterton e editor daNabuco, certamente a melhor revista de ensaios do país. O Ronald, emocionadíssimo, julgando-se em falta com o dr. Jomar por não lhe ter feito uma visita mais recente. Uma bobagem, claro, realçada pela emoção da perda.

O Ronald me contou da indignação que sentia quando muitos supostos luminares dos estudos literários e historiográficos, em especial das universidades, abordam, em tom jocoso,a aura de “Atenas Brasileira” que desfrutava São Luís no século XIX, não deixando de imputar ao dr. Jomar uma pecha de beletrista diletante, com toda a carga ideológica que as catalogações sumárias trazem. O Ronald finalizou, certeiramente, que esses indivíduos fingem ignorar que, se tiveram acesso à obra de numerosos autores maranhenses dos séculos XIX e XX, foi porque o dr. Jomar os tirou do limbo do esquecimento, deu-lhes tratamento editorial adequado e os recolocou em circulação. Lembrei-me, então, da mesma santa indignação desse outro querido amigo, prof. Sebastião Duarte, também membro da AML: “Lorêdo, já me veio gente falando que o Jomar não passava de um editor… Ora, como se não bastassem as obras fundamentais que ele escreveu, como o Guia de São Luís do Maranhão, Gonçalves Dias: vida e obra e O homem-dicionário, que permanece inédito, o Jomar, editando grandes autores, se fez um gigante mais ainda, porque essa é uma grandeza do homem…”.

Os muitos títulos e feitos de Jomar Moraes – editor de mais de 100 livros, a maior parte dos quais então de dificílima consulta; pesquisador operoso, um dos grandes responsáveis pela reabilitação de Sousândrade; escritor de texto impecável; colaborador dos maiores jornais do Estado, com artigos que dariam vários volumes; presidente da Academia Maranhense de Letras por 22 anos, em função do quê a Casa de Antônio Lobo se tornou a grande Casa de cultura do Estado; o idealizador e coordenador da Coleção Documentos Maranhenses; o gestor admirável do SIOGE – dão uma pálida ideia da grande figura humana que foi, com o seu ceticismo realista, a sua sinceridade implacável e o seu coração generoso.

O homem-dicionário sairá sem a última revisão do mestre; ainda assim, constitui um dos muitos motivos pelos quais este modesto artigo evocativo é um falso necrológio, pois os grandes homens não morrem jamais.“o poema não morre / o amor não morre” (Bandeira Tribuzi, Breve memorial do longo tempo).

15.08.2016.

 

2 comentários sobre “Um falso necrológio.

Deixe um comentário